quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Tão estranho quanto a ficção


No espetacular livro de George Orwell "1984", o protagonista Winston Smith é um funcionário do Ministério da Verdade, e o seu trabalho consiste basicamente em alterar todas as notícias já publicadas sobre determinados assuntos (mais notadamente a guerra que seu país trava ora com um inimigo, ora com outro), de acordo com instruções superiores e sempre sobre a presença onisciente do Grande Irmão (o Big Brother original). A trama se passa em um futuro não tão longínquo, pós-guerra e dominado pelo totalitarismo.

Reescrever a história sempre foi um expediente utilizado pelos vencedores e/ou déspotas de modo a perpetuar as suas visões da história, transformando mentiras em verdades ou meias verdades em inteiras.

Ontem, o brasileiro mostrou mais uma vez que sua criatividade não tem limites, e de ofício alterou a história do futebol brasileiro. Sem discussões, sem contra-argumentação, apenas com uma assinatura.

Não sou historiador (embora quisesse sê-lo), mas minha curiosidade e gosto pelo esporte fizeram com que eu conhecesse um pouco a história do futebol praticado no meu país, a qual descrevo resumidamente abaixo.

Fase da introdução: final século XIX-1930
O futebol, oficialmente introduzido no Brasil por Charles Miller, rapidamente abandona o exclusivismo da elite e abraça o povo, tornando-se não só o esporte mais popular do país como um traço fundamental da sua cultura. Época romântica, amadora, com competições disputadas em campos de várzea e ainda sem muitos indícios de que o foot-ball se tornaria o futebol. Nesse período é fundada a maioria dos clubes que se tornariam populares nas décadas seguintes e também a Confederação Brasileira de Desportos, que englobaria a organização do futebol no Brasil. A rivalidade real da época ocorre entre Estados, e não propriamente entre as agremiações. O grande nome do período, além de Miller, é Artur Friedenreich, que precisava esconder suas origens debaixo de camadas de pó-de-arroz para ser totalmente aceito. No cenário mundial, temos a fundação da FIFA e os Jogos Olímpicos como a grande competição.

Fase da regionalização: 1930-1950
O amadorismo dá lugar ao profissionalismo, jogadores transformam-se em ídolos reconhecidos e os Campeonatos Estaduais consolidam-se como os principais torneios do país. Leônidas da Silva, o "Diamante Negro" virou nome de chocoloate, que ainda está por aí. Campeonatos Paulista, Carioca, Mineiro, etc. atraem multidões aos estádios e marcam a divisão entre "grandes" e "pequenos", nunca mais do que quatro por Estado. As distâncias brasileiras, vencidas ainda com dificuldade, não permitem a criação efetiva de torneios nacionais, embora três edições do Torneio Rio-São Paulo tenham sido realizadas, sendo apenas uma terminada. O acirramento da rivalidade entre Federações estaduais traz mais problemas que soluções, como as Seleções enfraquecidas nas primeiras Copas do Mundo. Quatro edições deste torneio são disputadas, que terminou com a tragédia do Maracanazzo e a consagração do complexo de vira-latas de toda uma nação.

Primeira fase da nacionalização: 1950-1970
Futebol já é coisa muita séria por aqui, e o progresso da década de 50 permite novos saltos. Torneios nacionais são, enfim, disputados com regularidade, embora ainda disputando espaço em importância com os torneios estaduais. O Torneio Roberto Gomes Pedrosa, popularmente conhecido como Rio-São Paulo, passa a ser disputado anualmente e no final do período (1967) admite times de outros Estados, voltando a ser chamado por seu nome original (ou "Robertão"). Em 1959, com o início da disputa da Libertadores da América, é criada a Taça Brasil, que reunia os campeões estaduais e que indicaria os representantes brasileiros no torneio continental. Ninguém foi - nem será - maior que o Santos de Pelé. Com o desenvolvimento do esporte como um todo a CBD dá lugar às federações, dentre elas a Confederação Brasileira de Futebol - CBF. O mundo vê o ressurgimento da Copa do Mundo após o hiato bélico da década de 40 e aprende um novo jeito de se jogar o esporte bretão, com os três títulos canarinhos. A Copa de 70 (a maior de todas) encerra um período espetacular para o esporte no Brasil e no mundo, e cria um tal de marketing esportivo que viria para ficar.

Segunda fase da nacionalização: 1970-2002
O Torneio Roberto Gomes Pedrosa é substituído pelo Campeonato Brasileiro, disputado pela primeira vez em 1971, e a Taça Brasil é extinta (algo parecido surgiria no final da década de 80, com a Copa do Brasil). O Brasileirão demora um pouco a engrenar, disputando por boa parte do período as atenções com os Campeonatos Estaduais que, pouco a pouco, vão perdendo a relevância. Fórmulas complicadas e sem um padrão do torneio nacional mantêm o status quo da divisão entre "grandes" e "pequenos", aumentando ainda mais as diferenças entre os dois. A grana começa a rolar de verdade, os dólares falam mais alto que cruzeiros, cruzeiros-novos e cruzados e nossos craques deixam cada vez mais o país. O futebol globaliza-se e bilhões assistem a consagração de Ronaldo com o Penta.

Terceira fase da nacionalização: 2002-
Assim como grandes conglomerados econômicos tomaram o lugar das empresas regionais/nacionais, times com pouca torcida ou oriundos de Estados com menor capacidade econômica perdem espaço para os quatro grandes centros do país, principalmente Rio-São Paulo - e o futebol nacional perde ídolos, ainda antes de se tornarem ídolos, para centros no exterior. Os campeonatos estaduais tornam-se caricaturas do que já foram um dia, sustendos apenas por uma base que tem como único objetivo sua própria sustentação. O conceito dos "12 grandes", embora ainda aplicado, perde cada vez mais o sentido. O Campeonato Brasileiro, com décadas de atraso, adota a fórmula dos pontos corridos. Se isto for mantido (e tudo leva a crer que será) assistiremos à formação de um novo panorama do futebol nacional, com o fim definitivo dos times pequenos e diminuição do número dos "grandes" (afinal, nenhum campeonato no mundo gerou, no longo prazo, mais do que quatro times realmente dignos de carregar este adjetivo). A história ainda está em construção...

História não se altera, se valoriza. Deve ser contada tal qual aconteceu, para que saibamos como chegamos até aqui e para onde queremos ir. Para aqueles com essa noção, nem a mais poderosa canetada pode mudar o passado. E se nossa história não é devidamente valorizada, boa parte da culpa é daqueles que fazem parte dela.

O triste disso tudo é ver o futebol, patrimônio cultural brasileiro, nas mãos de gente que não dá a mínima pra ele. Mas utiliza-o como ferramenta de ativação do círculo virtuoso (vicioso?) poder-dinheiro-poder-dinheiro.

Um processo no qual, mais importante do que fazer o certo, é ser amigo do rei.