Nesta semana, tivemos grande debate a respeito da proposta do Ministério dos Esportes de realizar um grande cadastramento de torcedores e de todos aqueles que pretendam assistir uma partida de futebol, com a implantação da Carteira do Torcedor. A notícia, para os não-entendidos no assunto, pode parecer uma atitude positiva do Governo, que enfim resolve adotar alguma medida para conter a violência nos estádios.
Porém, vindo de quem veio, a proposta não poderia ser solução para nada. A incompetência e ignorância do Ministro dos Esportes Orlando Silva - e, porque não, do seu chefe - é tamanha que chega a assustar o fato de alguém com tão pouco conhecimento sobre esportes e história ser alçado ao cargo de Ministro de Estado.
É claro que de carteirinha o Ministro entende muito bem. Afinal, foi ele quem, como Presidente da UNE, tornou um direito mundial dos estudantes em sinônimo de má-fé pública aqui no Brasil, com a popularização da 'carteirinha da meia-entrada'. Quem não tinha um parente ou conhecido, na casa dos 50, que possuía o tal documento - confeccionado em pizzaria - e, com ele, obtinha 50% de desconto em cinemas, shows e teatros?
O resultado disso foi a elevação dos preços das referidas atrações (que, obviamente, não os reduziram mesmo com a implantação de um controle mais rígido sobre as carteirinhas), a banalização de um direito dos estudantes e o início da carreira política do Ministro.
Voltando à Carteira do Torcedor, é incrível como alguém possa apresentar um projeto que já fracassou num lugar em que a violência nos estádios foi um problema ainda mais grave que no Brasil: a Inglaterra. Para maiores informações, vejam o ótimo texto de um estudioso no assunto, Oliver Seitz, do site Universidade do Futebol.
Não se pode admitir que governantes, ao se depararem com determinado problema, não tenham - ou não busquem - um conhecimento mínimo sobre a matéria.
Mas vou ser solidário ao Ministro. Talvez, para ele, textos legais ou acadêmicos sejam complicados demais, o que motivaria seu desinteresse por eles.
Então, recorri a uma fonte mais popular: o ótimo livro "Febre de Bola", do autor inglês Nick Hornby (que inclusive já foi citado neste blog). Para quem não sabe, a obra, auto-biográfica, retrata a paixão do autor pelo futebol e seu time de coração, o Arsenal, desde a infância (final dos anos 60) até a vida adulta (início dos anos 90, quando foi escrito). Além de uma leitura extremamente prazerosa, pode servir de inspiração - e alerta - para o nosso problema de violência nos estádios, pois o período retratado pelo autor se incia com os primórdios do hooliganismo inglês e termina com o ápice da barbárie das tragédias de Heysel e Hillborough.
Comecemos nossa aula de história (os grifos são meus).
Sobre a tragédia de Heysel, escreve Hornby: "Nosso futebol atravessara todo o ano de 1985 se aproximando irreversivelmente de algo assim. Houve aquele tumulto espantoso do Millwall em Luton, onde a polícia foi desbaratada, e as coisas pareceram chegar a um ponto que jamais haviam atingido num estádio inglês (foi aí que a sra. Thatcher concebeu seu plano absurdo de carteiras de identidade); houve também o tumulto entre o Chelsea e o Sunderland, quando os torcedores do Chelsea invadiram o campo e atacaram os jogadores. Esses incidentes ocorreram com poucas semanas de intervalo, e foram apenas uma amostra. Heysel estava para acontecer, com a mesma inevitabilidade do Natal." E mais à frente: "Mas a brincadeira que se revelou assassina em Bruxelas pertencia firme e claramente ao contínuo de refrões violentos, sinais obscenos e babaquices de machão, ou seja, ao conjunto de atos permanentemente inofensivos, mas obviamente ameaçadores, nos quais uma minoria bem grande de torcedores vinha se comprazendo havia quase vinte anos. Em resumo, Heysel era parte orgânica de uma cultura para a qual muitos de nós, inclusive eu, haviam contribuído. Não dava para você olhar aqueles torcedores do Liverpool ... e se perguntar: 'Quem são essas pessoas? 'Você já sabia."
Heysel, para quem não sabe, é o estádio de Bruxelas em que foi realizada a final da Champions League (então, com outro nome), entre Juventus x Liverpool, vencida pelo time italiano, mas que antes de iniciada, presenciou à morte de 39 torcedores, esmagados contra a grade, após uma briga iniciada por hooligans ingleses. Corria o ano de 1985 e, como consequência, os times ingleses ficaram proibidos de participar de competições européias por cinco anos.
Só que não acabou por aí. O pior aconteceria quatro anos mais tarde, em uma partida entre o mesmo Liverpool e o Nottingham Forest, pela semi-final da FA Cup de 1989, em Hillsborough: "A premissa era a seguinte: estádio de futebol construídos, na maioria dos casos, por volta de cem anos antes" ... "Por décadas a fio, em grupos compactos de 10 ou 12 mil, aquelas pessoas vinham se postando em pé sobre arquibancadas de concreto mui íngremes e em alguns casos até rachadas, às vezes reformadas, mas essencialmente inalteradas." ... "Quando o futebol virou um placo para a guerra das gangues, e a repressão e não a segurança passou a ser prioritária (novamente os tais alambrados), uma tragédia de grandes proporções passou a ser inevitável. Como é que alguém podia ter esperança que aquilo desse certo?" ... "Havia tanta coisa que poderia ser feita e nada o foi; todo mundo continuou na mesma ano após ano, durante cem anos, até Hillsborough acontecer."
O relato ainda traz alguns trechos da revista The Economist de época, sobre o ocorrido: "'... só a fraqueza dos regulamentos vem permitindo que os clubes continuem a fingir que a segurança do público é compatível com uma arquitetuta penitenciária." Sobre as autoridades futebolísticas: 'Em termos de complacência e incompetência, nã há nada como um cartel.'"
E, após outras ponderações sobre as causas e consequências da tragédia, Hornby coloca, mais uma vez: "... se não fez mais nada, Hillsborough ao menos destruiu aquele esquema ridiculamente malconcebido de carteiras de identidade de Thatcher..."
Saldo de Hillsborough: 96 mortos e um mundo que não poderia continuar do jeito que estava - pelo menos, para o futebol inglês. Como os italianos mortos na Bélgica não comoveram o suficiente as autoridades britânicas, essa tragédia doméstica o fez.
Os trechos acima, se colocados em outro contexto, poderiam ser enquadrados como catastróficas profecias sobre o futebol brasileiro; porém, o livro não trata de futuro, mas de eventos ocorridos há mais de 20 anos (!) em um país altamente civilizado, que teve que enfrentar um problema gravíssimo, mais grave que o nosso, e conseguiu. Na minha infância - época de Heysel e Hillsborough - pouco se falava dos clubes ingleses. Espanhóis e principalmente italianos dominavam o cenário do futebol mundial, pois os ingleses estavam envolvidos em outro tipo de questão.
Passadas duas décadas, a Premier League é o campeonato nacional mais valorizado do mundo, e os times ingleses são os melhores.
Os ingleses resolveram seus problemas. E, para o mundo, deixaram o legado de como fazê-lo. Já está tudo lá, pronto, documentado e pormenorizado. Não é preciso inventar mais nada, apenas, talvez, adaptar o que deu certo lá para a nossa realidade.
E o que me deixa puto é que, não só não adotamos as práticas de sucesso já implementadas, como repetimos as que fracassaram.
Incompetência e ignorância têm limites, mas parece que o Ministério dos Esportes, o Governo Federal e todos que os cercam ainda não encontraram os seus.
Até onde vamos?
sábado, 21 de março de 2009
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2 comentários:
muito bom o texto, Bola! Ainda mais pra ler depois de um final de semana com os clássicos Santos x Corinthians e Vasco x Flamengo cercados de violência e de provas de despreparo e incompetência dos responsáveis pela realização de um evento desse tamanho!
abraços, Binho
Esse livro do NH é genial!
Eu já o usei para contra-argumentar a um blogueiro palmeirense-manchista (http://forzapalestra.blogspot.com/). Apesar de eu saber que esse blog é feito para palmeirenses, e que são-paulinos como você deverão desgostar da maioria dos textos e opiniões, eu recomendo a leitura dos posts que tratam da elitização do futebol. Esse cara é fortemente contra isso e não há nada que mude a cabeça dele.
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