segunda-feira, 16 de julho de 2007

Culpa e redenção

Há onze dias, lembrei dos 25 anos de Sarriá. Ou a Tragédia do Sarriá, como ficou conhecida a partida entre Brasil e Itália na Copa de 82. Essa "tragédia", no entanto, foi muito menos trágica do que outra, ocorrida há exatos 57 anos. Em 16 de julho de 1950, o Brasil perdia a Copa do Mundo para o Uruguai, em pleno Maracanã. Tanto 50 como 82 são, sem dúvida, as duas maiores tristezas da história do nosso futebol. Ambas compartilham de fatos semelhantes que as classificaram desse modo. Porém algumas diferenças surgiram ao longo do tempo e fizeram com que, mesmo na semelhança, essas duas derrotas assumissem papéis diferentes na história.
Primeiramente, os pontos em comum.

As duas seleções eram queridas do povo, apresentando um futebol vistoso que encantava não só os brasileiros como todo o mundo. Se em 50 empatamos um jogo na primeira fase contra a Suíça, em 82 tivemos um começo de jogo nada animador contra a URSS, saindo atrás do marcador e só depois impondo a supremacia brasileira. As duas eram apontadas como francas favoritas no jogo em que se depararam com a derrota, quando precisavam apenas de um empate. A tristeza tomou conta do Brasil após o final dos dois jogos, sendo prontamente substituída por uma caça às bruxas. Se em 50 o goleiro Barbosa foi apontado como o grande responsável por ter deixado seu canto esquerdo aberto para o chute de Ghiggia, em 82 foi o passe no vazio de Cerezo que causou a volta para casa da Seleção Canarinho.

O time de Flávio Costa e o de Telê Santana ficaram marcados, em suas respectivas épocas, pelo retumbante fracasso. Mas as circunstâncias dessas duas derrotas foram diferentes, e os anos seguintes trataram de trazê-las à tona.

A Copa de 1950 foi organizada, construída e festejada para o Brasil ser campeão. Com a Europa ainda de joelhos no pós-guerra e sendo a sede do torneio, parecia claro que finalmente ganharíamos uma Copa do Mundo. Naquela época nosso futebol não tinha a imagem que tem hoje e imperava o 'complexo de vira-lata', quando nos colocávamos abaixo inclusive dos rivais sul-americanos. Mais do que uma vitória esportiva, a taça traria para o povo brasileiro a auto-confiança que lhe faltava. Os meios de comunicação da época propiciavam o surgimento de lendas e mitos, já que imagens eram raramente vistas e o jogo dependia do ponto de vista de testemunhas oculares.

Em 1982, por outro lado, o torneio foi realizado na Espanha, e apenas uma vez um time não europeu havia vencido uma Copa no Velho Continente, - o time de Didi, Pelé e Garrincha em 1958, contra a Suécia - feito que se sustenta até hoje. O Brasil já era a maior potência do futebol mundial, tendo revolucionado o esporte décadas antes com a genialidade e improvisação dos seus jogadores. A Jules Rimet já era nossa em definitivo, ainda não tinha sido roubada e apenas 12 anos nos separavam de 1970. Jogos inter-continentais já eram transmitidos a cores para o mundo todo, com direito a replay e assinatura do goleador na tela.

Os três gols de Paolo Rossi ficaram entalados na garganta por anos, mas foram digeridos. Já o Maracanazzo destruiu o moral de um país inteiro e estigmatizou para sempre uma geração de craques. No primeiro caso, sofremos uma derrota doída demais, mas é possível superar tal dor - como o fizemos. O rótulo de tragédia cabe ao segundo, e nessas ocasiões dificilmente temos sobreviventes.

A geração de 82 seguiu em frente. Cerezo, o do passe errado, e Telê, o do pé-frio, sofreram por algum tempo, mas deram a volta por cima dez ano depois no São Paulo; Júnior conquistou mais dois títulos brasileiros pelo Flamengo; Zico inventou o futebol japonês e virou técnico de sucesso; Sócrates até hoje é considerado o maior jogador da história do Corinthians, e assim por diante. Mesmo não sendo campeão, aquele time é reverenciado por todos. A redenção veio para a geração de 82, mas não para a de 50.

São poucos hoje os que se lembram da escalação do dia do Maracanazzo. Só Barbosa continua na lembrança, pelo erro que supostamente cometeu no segundo gol uruguaio. O engraçado é que poquíssimas pessoas viram o lance, já que a imagem gravada foi feita de trás do gol, o que não permite que se veja direito o que aconteceu - muitos dizem, inclusive, que Barbosa fez o certo em fechar o cruzamento e que o chute direto de Ghiggia era impovável. Nada disso fez diferença pois precisava-se de um culpado, e o goleiro negro do Vasco foi o escolhido. Morreu em 7 de abril de 2000, na Praia Grande, esquecido e amargurado com a culpa que carregou por quase cinquenta anos.

Vi uma resprise no Globonews alguns anos atrás sobre os trinta anos da derrota de 50. Era impressionante o rancor que os jogadores carregavam daquele jogo, inclusive entre esles próprios. Juvenal, Bigode e Barbosa, os três brasileiros diretamente envolvidos no lance do segindo gol uruguaio, jogavam a culpa um para o outro, como se buscassem a absolvição através da desgraça alheia. E tudo isso três décadas depois! Já há dez dias atrás, no aniversário de 25 anos de Sarriá, o Sportv fez programa semelhante com todos os jogadores de 82. A única mostra de ressentimento veio do Oscar, que disse ter havido excesso de confiança, e de Paulo Isidoro, por ter ficado na reserva. Porém, uma opinião era unânime: todos tinham orgulho de terem participado daquele time. Assim como todos nós também temos.

Fazemos festa pela Seleção de 82, mesmo com a derrota. Mas duvido que daqui três anos, com os 60 anos da tragédia do Maracanã, alguém se lembrará com ternura de Barbosa, Augusto e Juvenal; Bauer, Danilo e Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Para eles, a redenção não veio e a culpa é eterna.

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